TESTEMUNHOS
MOÇAMBIQUE
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Passando o Rovuma
Colecção particular |
8 DE NOVEMBRO DE 1916DE NEVALA PARA LULINDI
(...) Falava-se com insistência nos famosos reforços que a Metrópole enviaria, mas os soldados sentiam-se cheios de desenganos, abatidos por tantas e tão desoladas amarguras, deixando-se abater, andrajosos, ampaludados, rotos de espírito e vestuário, acreditavam, com uma serenidade búdica de dever cumprido, que já não tinham alma para mais! (...)
(...) Ao Quartel-general competia estar em Palma, a cento e tantos quilómetros, onde nem um berro de canhão chegava. Em compensação trabalham de gabinete como mouros, expedindo ordens:
- Avance!
- Mas não temos víveres...
- Avance!
- Mas não temos água...
- Avance!
E cá vamos seguindo junto ao rio, como uma lesma (...)
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Sobre o Rovuma
Colecção particular |
(...) E numa tarde de sonho Deus chegou! Era o Major de Artilharia, Leopoldo da Silva, visionário incorrigível, na sua luminosa coragem, na ode magnífica da sua insensatez marcial(...)
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Major Leopoldo da Silva
Colecção particular |
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Marcha para Lulindi
Colecção particular |
(...) Vinha ébrio de sonho. Que iria suceder? O Major com o seu aspecto viril e inquieto, com o seu séquito de artilheiros todos rútilos e altivos nas fardas vistosas, metia medo e deslumbrava! Leopoldo da Silva trazia, de Palma, as suas credenciais de novo chefe da COLUNA DE MASASSI, arrebanhou homens, exaltou esperanças e redigiu a "Ordem de Marcha" e, no dia imediato a Coluna, meia estremunhada, meio louca, abandona a esplanada de Nevala marchando para Lulindi (...)
(...) À frente, Leopoldo da Silva e a sua hoste de artilheiros, cavalgando com firmeza, seguindo-o, um grupo de militares sem vontade, sem fé, projectando na fria luz da madrugada a sua mancha bizarra de miséria: clarões de carne ao léu, farrapos de vestuários, alguns meios nus, outros em mangas de camisa (...)
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Colecção particular |
(...) Com o sol ardente, às portas de Lulindi a artilharia toma posições, regula o tiro e abre fogo nutrido. As "sharpnell" sibilam em chicotadas de aço, batendo o ar mas sem resposta do inimigo (...)
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A artilharia
Colecção particular |
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A emboscada alemã
Colecção particular |
(...) Retoma-se a marcha e, com a coluna entupida na apertada barragem do caminho, num belo alvo, a emboscada alemã replica então com ferocidade varando a cavalaria de exploração numa fuzilaria brava (...)
(...) Há um embaraço e pânico, tumultos, esboçam-se fugas. A estreita estrada regurgita de trens municiadores e carros de víveres, dificultando as posições. Mas a infantaria negra estende e abre em duas secções; a primeira comandada pelo valente Tenente Saraiva, da 22.ª Indígena, ocupa o flanco esquerdo; a segunda, postada no flanco direito às ordens de outro bravo militar, o Sargento Matos do 28 (...)
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Colecção particular |
(...) O fogo rompe, primeiro fraquejante, depois intrépido e quente. Mas o inimigo encrespa-se com ousadia, assume superioridade, varre as frentes com rajadas continuas (...) Entretanto para desgraça das armas portuguesas, a nossa artilharia muito perto de nós, não podia fazer fogo, e as metralhadoras muito a custo eram arrastadas para a linha de combate. A guarnição dessas armas era deficientíssima: as peças tinham um clarim, um 2.º cabo, dois sargentos e um oficial; as metralhadoras apenas nove soldados de infantaria, apanhados à unha, conhecendo esta arma só de longe (...)
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Artilharia alemã
Colecção particular |
(...) E já nas metralhadoras faltam as munições; já os carregadores fogem apavorados com esta luta de tigres enfurecidos, e é então que o Major Leopoldo da Silva vendo, num relâmpago, a queda inevitável do seu vasto sonho de águia napoleónica, corre, numa humildade de soldado que não trepida, e acode com pólvora, com um cunhete inteiro, à metralhadora prestes a calar-se...mas duas balas sibilam com alegria macabra, criminosas, ímpias, e o Deus tomba, ferido de morte! (...)
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As metralhadoras
Colecção particular |
(...) A raiva da dor e a previsão duma derrota morde como áspides a coragem destes leões, perturbando o campo. E um incêndio de loucura varre as fileiras, cresta as almas (...) um sargento do 28, neste desvairamento da refrega, prende o Alferes Craveiro Lopes tomando-o por "boche", o Tenente Germeniano Saraiva, varejado pelas nossas metralhadoras, intima-as a calarem-se ou a mudarem de direcção, sob o perigo de mandar os seus homens fazer fogo contra elas, ninguém se entende (...)
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Capitão Pedro Curado
Colecção particular |
(...) Entretanto, levado para a retaguarda com o Ajudante - o Alferes Monteiro Leite, também ferido quando o socorria - o Major Leopoldo da Silva, rouco, esvaído de sangue, clamava que "retirassem" e salvassem os seus soldados...- grande ainda, Senhor, no seu imenso coração vencido! (...) os ânimos dobram-se, há um fraquejo nos graduados. Seria melhor retirar...alguém alvitra com timidez (...) ergue-se então o maior Homem de toda esta Epopeia decadente: é o Capitão Pedro Curado! Pistola no cinturão, cavalo-marinho e cachimbo à "rifle", dissimulada despretensiosamente sob o chapeirão bóer (...) e sem perder um momento é ele que assume o comando. Então de novo o campo se electriza. À falta de água, esgotadas já as últimas garrafas de Cúria e Vidago, urinar-se à pressa no "refrigerador" das metralhadoras. Depois, sempre de pé, arrastando todo o arraial, o chefe precipita a sua companhia negra numa avalanche sobre o "boche", a qual, valente como nunca, ébria da pólvora e lisonjeada pela grandeza do comandante, rompe em pavorosa gritaria e faz uma "carga" ululante e épica. Foi o fim. O inimigo fraquejou, quebrou e sob o último tiro das nossas granadas, calou-se de todo, retirando em desordem, desmantelado, sem orgulho e sem forças, para a baixa charneca de Lulindi. Anoitecia (...)
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Posto de observação
Colecção particular |
(...) Com a retirada de Leopoldo da Silva o comando do combate pertencia ao Capitão Baptista, das metralhadoras como, oficial mais antigo. Porém alegando não sei que "pessoalíssimas razões" este, oficial, recusou-se terminantemente a esta missão. E como comentário é conhecido este grito galhardo do Capitão Curado, que berrou para um emissário, no fim do combate: "DIGA LÁ AO SR. CAPITÃO BAPTISTA QUE VENHA TOMAR O COMANDO DISTO, QUE JÁ NÃO HÁ TIROS" (...)
(...) Louco? Visionário? Leopoldo da Silva ficou no meu coração, que meu pai ensinou a ser grande, como símbolo do esforço heróico, castiço, da velha cavalaria Lusa - por isso merecendo o meu amor e a minha admiração, poucas vezes dispensada aos homens. Que ele fosse um louco, sim! Mas todos nós preferiríamos morrer heroicamente com este Louco, numa luta briosa e enérgica, com sangue e sol, a acabarmos vergonhosamente como o aristocrático senhor de Palma, apodrecendo nas lamas da Base."
(...) Glória ao Herói de Quivambo! (...)
António da Cértima in: "Epopeia Maldita"
Coorden. do texto: marr