sábado, 7 de setembro de 2013

CORPO EXPEDICIONÁRIO PORTUGUÊS (C.E.P.) A FRANÇA 1917-18

UM DIA SEM OCORRÊNCIAS

Terra de Ninguém (Colecção particular)


O que é que se vê da 1.ª Linha? Coisas pavorosas durante a noite, quando a lua ou os "very-light" iluminam a Terra de Ninguém. À frente do parapeito, a rede de arame farpado; um verdadeiro inferno inventado pelo diabo para não deixar descansar o soldado. Todas as noites era preciso consertá-lo; todas as noites o inimigo cortava um pedaço.

Na Terra de Ninguém
(Colecção particular)
Uma noite, ao "a postos", seis granadas caiem em diversos pontos, à frente e à rectaguarda, mas muito próximo da 1.ª Linha; aquela hora, era para dar que pensar. Os homens recolhem aos abrigos, apenas as sentinelas e o oficial de serviço ficam nos seus lugares, porque estes homens têm de manter-se nos seus postos, ainda que a trincheira vá pelos ares.

A seguir, começam a chover granadas sobre o abrigo do comandante da companhia na razão de uma por segundo. Pelo ar voavam destroços de madeira, de arame, terra...latas de conserva, estacas, etc., etc.

Neste inferno, para se fazerem ouvir, os oficiais gritavam furiosamente as ordens aos ouvidos dos homens, como se lhes fossem morder as orelhas. O comandante da companhia quer comunicar com o do batalhão: impossível; estão as ligações rebentadas. Manda uma ordenança com um pedaço de papel onde à pressa escreveu:- «violento bombardeamento sobre a 1.ª Linha e trincheiras de comunicação. Tudo recolheu aos abrigos».

Máscara anti-gás modelo P de
1915 (inglês) utilizado pelo CEP
(Colecção particular)
Observa-se o momento em que o inimigo alonga o tiro; nesse momento está toda a gente no parapeito, que o Boche deve atacar. Os subalternos correm para a linha, as granadas continuam chovendo nela; sentiu-se uma primeira baforada de gás, e os subalternos gritam aos homens para que ponham as máscaras. E então nota-se - caso notável - que o bombardeamento não aterroriza os homens na 1.ª Linha, como se poderia supor,e que, pelo contrário, permanecem mais enérgicos, mais cheios de vida, com os nervos tonificados como ao ouvir uma bela orquestra tocando uma música emocionante.

A nossa artilharia, sempre pronta, começara a responder havia já um quarto de hora; mas o estrondo das granadas inimigas em torno da nossa gente era tal, que não deixava perceber que a nossa artilharia fazia já fogo, e que as nossas granadas faziam voar o inimigo para fora das suas trincheiras.

(Colecção particular)
O bombardeamento contrário incidia particularmente num ponto do parapeito, numa frente do pelotão, e o comandante da companhia mandou concentrar os seus homens, à excepção das sentinelas, próximo de um dos flancos da porção bombardeada, todos com máscaras, baioneta armada, prontos a contra-atacar; as metralhadoras apontadas à brecha. Alguns homens caiem; os maqueiros prontamente os transportam para a rectaguarda, para o posto de socorros.

De súbito, parou o bombardeamento, embora persistindo mais para os flancos. A metralhadora do nosso lado direito cessou de funcionar, a sua guarnição caíra toda e o inimigo aparece no parapeito; a esta vista, o pelotão concentrado num dos flancos, rompe fogo; os alemães surpreendidos, recuam; o comandante do pelotão salta para o parapeito e atrás dele os seus soldados que caiem sobre o inimigo que rola para a Terra de Ninguém.
Soldados alemães ao ataque. (Colecção particular)

Os nossos soldados descarregam as espingardas sobre eles: chovem granadas, batem-se à baioneta com os alemães os soldados do 34: mais para a direita, sobre o monte de ruínas do parapeito esburacado pelas granadas combatem à baioneta os soldados do 34, do 15 e do 13... outros militares acodem e o inimigo desaparece...
Obuses alemães (Colecção particular)

O bombardeamento, agora, incidia feroz sobre as nossas baterias; uns poucos de abrigos de peças estavam esborrachados, as guarnições soterradas; noutros, os artilheiros continuavam aos pulos, furiosos, como demónios, carregando e despejando as suas peças. E o fogo aumentava de intensidade; os comandantes de bateria activavam o remuniciamento, não fossem faltar munições quando eram precisas.
Artilheiros portugueses (Colecção particular)

Na frente fizera-se a calma, e os maqueiros levantavam e transportavam os feridos e mortos. Os comandantes de pelotão tomavam nota das perdas e das reparações a fazer. O Brigadeiro veio logo às linhas saber o que se passara.

Quando os telegramas publicados nos jornais diários dizem: 
- «Sossego em toda a frente»,
o bom cidadão que lê o "Diário de Notícias" ao mesmo tempo que sorve o seu café com leite matinal, diz consigo ou para a família:
- «Estes diabos da tropa sempre têm uma sorte!»
(Colecção particular)

O que este bom burguês-amigo ignora, é que o «sossego em toda a frente» dos telegramas significa uma noite com um ou dois incidentes, como o que acabamos de narrar, com pouco relevo; é que esse «sossego» , que põem o cidadão tão desdenhosos para connosco, representa uns mínimos de 8 a 10 mortos e 30 a 40 feridos! 

In: A Grande Batalha do CEP pelo General Gomes da Costa.

Coordenação do texto e imagens: marr

segunda-feira, 1 de abril de 2013

CORPO EXPEDICIONÁRIO PORTUGUÊS (C.E.P.) A FRANÇA 1917-18

O CAPITÃO LUÍS GONZAGA


Tinha chegado a França com fama de valentia. Os rapazes com que ele haviam estudado contavam façanhas e bravuras. A sua bravura nativa era essência fundamental do seu temperamento e pela qual toda a sua curta vida nada mais foi que uma constante busca de aventura.
Capitão Luís Gonzaga
Uma das suas últimas fotos
Quando o batalhão, por alturas de Maio entrou em Ferme du Bois, logo começou a correr a sua fama de aventura e coragem.

O apelo e o mistério da Terra de Ninguém era para ele uma tentação à qual não sabia ou não conseguia resistir. E, a toda a hora da noite, ele era o passeante ousado com a fúria de ver, de saber, de penetrar os segredos dessa faixa de morte. Pela manhã, de regresso, aparecia na borda do parapeito a sua face viva, o monóculo rebrilhando na órbita, o cabelo salpicado de lama. Vinha da aventura: roto, encharcado, quebrado de fome e de esgotamento. Que fora ver? Que elementos trazia? Fora colocar-se em perigo, fora salvar o prestígio e a fama que eram o alimento da sua alma insubmissa.
(...) o mistério da Terra de Ninguém era para ele uma tentação(...)
A fama cresce. Da retaguarda pedem façanhas a troco de galões. Gonzaga é procurado insistentemente. Uma recusa formal é a resposta da sua boca orgulhosa. E, por cada oferta e a seguir a cada recusa, o Gonzaga lança-se espontâneamente e desinteressadamente em acções ofensivas. Os soldados falam dele com espanto. De Armentiers a Bethune todas as bocas portuguesas repetem orgulhosamente o seu nome. Um dia, é ferido gravemente por uma granada de mão que explode dentro do parapeito. E, ferido, entrapado, chagado, abandona o posto de socorros e regressa à primeira linha, paisagem querida dessa alma de acção. Dentro do batalhão a companhia é um cantinho onde os mais variados temperamentos se fundem ao calor do mesmo fogo heróico.


Dos subalternos Henrique Augusto é o beirão valoroso; Alípio Oliveira é o trasmontano leal, que encara a morte com uma pachorra sorridente e tranquila. Mas Gonzaga aspira a ser superior! Nomeado agente de ligação, os mapas de arame, os boletins de informação, os relatórios do estado atmosférico, provocam-lhe gargalhadas cruéis. Como recolhia tarde da Terra de Ninguém, os mapas chegavam tarde à Brigada; e a Brigada tinha em menos conta o seu serviço. E, todavia, não saíam patrulhas que ele não guiasse, que ele não conduzisse através do emaranhado inextricável  de arames farpados, de estacas, drenos e valados a caminho do parapeito inimigo...

Saída para um «raid»
O seu espírito bizarro tinha singularidades inesperadas. Passava do sono mais profundo, de chofre, à actividade mais viva. As vigílias da linha não o abatiam. Saía da frente e vinha escrever, em estilo futurista, cartas às madrinhas de guerra. Só os fortes podiam viver junto dele sem ataque. Ao que ocultava cuidadosamente quaisquer sentimentos afectivos que significassem prisão ou fraqueza, repelia--os violentamente nos outros: "A vida deve manter-se livre para poder ser sacrificada livremente num bom momento!"  Tinha exclamações de bravura selvagem, explosões de entusiasmo, vibrantes como gritos de guerra.

Trincheira aliada


















Quando, um dia, os grandes homens da retaguarda descobriram que a Escola de Patrulhas devia ter como professor homens que "as tivessem feito", o Gonzaga foi nomeado professor. Nessa nova situação visitava com frequência os «rapazes», mais bem posto, o monóculo com cordão de ouro pendendo da orelha, a bota encordoada até ao joelho, óptimas luvas, a cabeça muito erguida, irritante, quase insolente. Vinha comunicar que requerera pela décima vez par a Aviação.

Entretanto, a companhia foi nomeada para fazer um "raid". Vieram aviadores para fotografarem a linha fronteira. Dois fortes abrigos do inimigo apareciam tentando as atenções. A artilharia combinou a acção com os infantes... O Gonzaga apareceu perfumado e risonho. Vinha reclamar um lugar na companhia!


Às 4 horas da madrugada da manhã do dia 9 de Março, a artilharia portuguesa rompia em bombardeamento furioso sobre a primeira linha alemã. Para a esquerda da estrada de La Bassée, as Seven-Sisters e a Sandy-Forench ardiam em explosões violáceas. E na frente de Ferme du Bois, a companhia do "raid" que viera de Rest-House, começava a saltar o parapeito entre os postos de Mole e o Copse estabelecendo-se para lá dos nossos arames. 




Os três pelotões iam actuar em separado: Corvo no do centro, Henrique Augusto no da direita, Alípio e Gonzaga no da esquerda. Apesar do infernal bombardeamento que se direccionava para o flanco direito os alemães fronteiros presentem  a saída da nossa infantaria. As suas metralhadoras disparam sem parar. Às 5 horas menos 5 minutos - um minuto a mais ou a menos pode ser o aniquilamento - a artilharia muda de objectivo «fecha a caixa» sobre a Stephane Walk e Mitzi French, isolando assim os inimigos de qualquer auxílio lançado da retaguarda.

Grupo de praças que tomaram parte no «raid»
Primeiro plano, à esquerda o 1.º Cabo Garrido, ordenança do tenente Gonzaga.
Todos estes militares foram citados e condecorados pelos ingleses
Vindas de longe, passam as granadas pesadas de fogo de contra-bateria. Às 5 horas em ponto o pelotão do centro inicia o avanço. Os outros acompanham o seu movimento. As «concertinas» de ao pé do parapeito são cortadas rapidamente e a companhia escala o parapeito alemão.


Soldado alemão numa trincheira. A macabra herança da Guerra















Os homens avançados do pelotão da esquerda encontram logo pela frente uma metralhadora ligeira que os alveja. O alferes Alípio avança decidido. Logo em seu auxílio surge o Gonzaga, que se arroja para a metralhadora a que um soldado deita a mão. O «boche», vendo-se dela desapossado, atira-se à baioneta contra Gonzaga que é ferido no rosto. Num momento, este arrebata a espingarda de um dos seus homens e o duelo começa, fulminante e decisivo.


Trincheira alemã














O alemão cai com uma baionetada no peito. Mas a guarnição da metralhadora tenta vingá-lo. E então o Gonzaga faz uso da sua pistola. Outro alemão tomba por terra. E segue com o Alípio para a limpeza da trincheira. Uma das granadas de mão, ao explodir, deixa gravemente ferido os dois oficiais...




Nessa manhã de regresso, aparecia na borda do parapeito um grupo de três homens, dois amparando o terceiro que, empalecido, esgotado, trazia o casaco numa pasta de sangue. Era o tenente Gonzaga que acabava de conquistar o direito de mais tarde impor a sua entrada na Aviação.

Em 27 de Outubro de 1921, aterram em Tancos, dois aviões "Caudron G III", pilotados pelos capitães Ribeiro da Fonseca e Luís Gonzaga, inaugurando-se nessa data a Esquadrilha Mista de Treino e Depósito.
Caudron G III
Esquadrilha Mista de Treino e Depósito - Tancos 1921
O capitão Luís Gonzaga, agraciado com o colar da Torre e Espada, Cruz de Guerra em França e que na altura era o capitão mais jovem do Exército, faleceu no dia seguinte, durante as cerimónias oficiosas da criação daquela Unidade.


Caudron G III

E, aquele que, tendo vivido a vida da lama e do sangue, precipitou-se na tentação da Morte...




NOTA
O oficial piloto-aviador Luís de Sousa Gonzaga nasceu em Coimbra em 1896. Frequentou a Escola do Exército e era oficial da Arma de Infantaria.

Em França e pela sua conduta heróica foi condecorado com a Cruz de Guerra de 1.ª Classe e promovido por distinção ao posto imediato.

Após a guerra frequentou uma escola francesa de aviação. Era então o Capitão mais novo do Exército Português, quando sobre Tancos, pilotando um avião, este se precipitou no solo, ficando ambas as pernas e um braço fracturados e gravemente ferido no ventre. A caminho de Lisboa, para dar entrada num hospital e ser operado, faleceu.

Luís de Sousa Gonzaga era filho do Major Farmacêutico Justiniano de Sousa Gonzaga. Além da Cruz de Guerra de 1.ª Classe, como foi referido, possuía a Military Cross inglesa, o colar de Oficial da Torre e Espada e a comenda de Avis.

Coorden. do texto e ilustrações:marr

Observação: coordenação de textos de diversos recortes de imprensa (col.particular) da época sem identificação

sábado, 2 de fevereiro de 2013

CORPO EXPEDICIONÁRIO PORTUGUÊS (C.E.P.) A FRANÇA 1917-18

A  ASSISTÊNCIA  RELIGIOSA

Ao comemorar-se no próximo ano de 2014 o primeiro centenário do início da Primeira Grande Guerra, não quis o responsável por este "blog" deixar de assinalar esta importante efeméride em parceria com o "site" Operacional.

Portugal só entrou na guerra no ano de 1914 em África, tendo apenas estado em França nos anos de 1917 e 1918, como este "blog" foi criado precisamente para homenagear todos esses heróis que estiveram presentes nas três frentes de batalha, Angola, Moçambique e França, recomeça-se abordando os mais diversos temas, principalmente os "menos conhecidos" ou por outras palavras os "mais esquecidos", dando-se principal destaque à parte iconográfica.

Reinicia-se com um trabalho dedicado ao tema em epígrafe, com um excelente artigo, publicado há 77 anos, escrito pelo Reverendo Padre Avelino de Figueiredo, que foi um dos primeiros sacerdotes a embarcar voluntariamente para França, deixando-nos um testemunho extraordinário sobre o que foi a Assistência Religiosa no C.E.P.. Neste sentido achei por bem transcrever o seu texto na totalidade.
O autor
Braçal da Assistência Religiosa
"Pelo Decreto n.º 2:942, de 18 de Janeiro de 1917, foi criada a Assistência Religiosa junto do Exército Português na Grande Guerra.

 Os termos deste Decreto eram tais, que o Governo português julgou não haver no país clero, que se oferecesse. Este era convidado para o sacrifício da sua tranquilidade, da sua saúde, para a morte, sem uma única garantia, ou remuneração! Nem pré de soldado lhe concedia o governo!
Padre Avelino Figueiredo (autor deste artigo) no
 caís de embarque. Colecção particular

Permitia-se a incorporação do clero no C. E. P. sem garantias de espécie alguma.

As enfermeiras eram equiparadas, para o efeito de soldo e subvenção, ao posto de alferes; os capelães equipararam-nos a alferes sem vencimento.

Os capelães de qualquer exército em campanha, na Grande Guerra, tinham o ordenado e subvenção correspondente ao seu posto, que ia desde tenente até general.

Uma excepção havia para os pobres capelães portugueses!

Um dia fui visitado em Lestrem, quando chefe dos serviços religiosos da 1.ª Divisão, pelo meu colega inglês duma Divisão do V Exército. Ele mostrou a sua indignação por me ver equiparado a alferes, pois os capelães ingleses nas minhas condições eram tenentes-coronéis.

À n/esq. o Cónego Álvaro Santos e à drt.o Padre
 Avelino Figueiredo. Colecção particular

Ignorava ele, que o chefe geral era alferes equiparado, sem vencimento. Quando os Hospitais ingleses se transferiam de Air-sur-la Lis para Merville, fui visitar os doentes portugueses que ali havia.

O capelão inglês e um seu doente, disseram-me, que não saísse, sem lhes falar. Que queriam?! Dar-me uma esmola. Como português senti-me vexado, mas não pôde rejeitá-la, tal a caridade com que a ofereceram; «para missas», por suas intenções.


Colecção particular
Porquê esta excepção?! O Governo português nunca calculou, que houvesse bastante patriotismo e fé ardente, que levasse aos campos de batalha o clero de Portugal, em condições tão desvantajosas. Verdade seja, que o episcopado do nosso país, num erro de visão, tinha resolvido opor-se à ida do seu clero para a guerra, na qualidade de capelães.

Quando o Governo português fez o oferecimento do nosso exército aos ingleses, resolveu enviá-lo sem capelães. O Governo inglês,-que tinha em cada batalhão ou hospital três capelães! Um católico, um anglicano e um prisbeteriano, ou seja um capelão de todas as religiões seguidas na Inglaterra - fez-lhe ver, que não aceitava os nossos soldados sem capelães; fossem eles de que religião fossem; mas que fossem da religião dos nossos soldados.

Reverendo Tavares de Lima. Cruz de Guerra.
 Pelo zelo com que procedeu já no seu ministério
 sagrado,já na coadjuvação dos serviços de enfermagem. Colecção particular
Os povos civilizados admitem, que os seus soldados tenham uma religião mas não os admitem sem religião, e assim os ingleses, franceses, alemães, austríacos e italianos tinham capelães junto dos seus exércitos.

Se o nosso Governo quisesse enviar capelães, não precisava, de princípio, criar o corpo de capelães-voluntários; bastava-lhe fazer seguir, com os nossos soldados os capelães, que tinha no exército, e que ainda lá estão, mas empregados em tudo menos no serviço religiosos e aperfeiçoamento moral dos nossos soldados.


Ele, porém, pretendeu simplesmente criar os capelães-voluntários, para inglês ver. Não havendo oferecimentos, não haveria capelães.
Reverendo Ângelo Ramalheiro.Cruz de Guerra. 
Pelo sangue frio com que assistiu à morte dum
soldado, sob intenso bombardeamento.
Colecção particular

Mas Deus, que se serve da mais fraca argila, para as suas obras, sugeriu a ideia do oferecimento de alguns padres, os quais tiveram a ampará-los o carinho desse alto espírito, que foi o cardeal Belo. Sua Eminência depois de lhes mostrar os inconvenientes do não oferecimento do clero para a guerra, dispensou-nos toda a sua benevolência.

Dois bispos estiveram sempre em espírito com os capelães militares -o Cardeal Patriarca e D. Sebastião, bispo de Beja.

Com o meu oferecimento para capelão do C. E. P. e a propaganda a favor dos capelães-militares começaram os oferecimentos, e formou-se o corpo dos capelães, embora tão diminuto, que não chegou para que cada unidade tivesse um capelão.


Reverendo António Rebelo dos Anjos.
Cavaleiro de Cristo. Pelo zelo invulgar
  como procedeu e pela demonstração
de coragem diante do perigo.
Colecção particular
O que de heroísmo, de fadigas e de trabalhos suportaram os capelães é assunto, que não cabe nos limites dum artigo. A sua acção com os olhos em Deus, não esperava recompensa humana.

O que é indubitável é que os capelães portugueses se equipararam em patriotismo e zelo apostólico ao clero francês, em prudência e valentia ao inglês e alemão.

Para mostrar o prestígio dos nossos capelães, basta citar um facto passado em Brest.

Um dia os aliados resolveram fazer uma festa com grande pompa na catedral de Saint Louis. Para essa festa foram convidados generais, almirantes, o perfeito marítimo de Brest, e tudo que de grande havia na capital da Bretanha.

Reverendo Dr. Luís Lopes de Melo.
Cruz de Guerra. Pela maneira como
procedeu na ambulância 1, ao ser
 bombardeada, pela decisão que mostrou e
pelo denodo com que serviu.
Colecção particular
Igualmente foram convidados os exércitos aliados. Havia ali 200 000 americanos, muitos franceses, ingleses e portugueses em pequeno número. Havia 8 capelães católicos americanos, vários franceses e alguns ingleses. Só Portugal tinha um único capelão para ali mandado, com sacrifício do front, para combater 5 capelães protestantes, que, dentro em pouco, abandonavam a cidade, e deixavam toda a acção religiosa dos nossos soldados na mão do nosso capelão.

Quem presidiu a festa tão selecta? O capelão português; tal o prestígio que o nosso padre obteve em terras de França!

O pobre pequeno núcleo de capelães portugueses em toda a parte soube impor-se pela sua linha moral, pela sua conduta, pelo seu sacrifício, pela sua ilustração, pelo seu zelo, o que nunca lhe foi reconhecido nem por gregos nem por troianos.


Cónego José do Patrocínio Dias. Chefe dos
Capelães Militares, louvado porque prestou
 importantes serviços, fazendo curativos,
e mostrando zelo e abnegação. Colecção particular.

O Corpo de Capelães Portugueses é a unidade mais citada e condecorada do C.E.P.; ganhou as suas condecorações pelos actos de abnegação, heroísmo e desprezo da vida, que praticou*.




O maior factor moral do nosso C.E.P. foi o capelão português! Para provar esta afirmação, tenho muitos casos.

Quantos espíritos abatidos pela sua prolongada permanência nas trincheiras se não fortificaram e se transformaram em heróis, devido à acção do capelão? Quantos, sem religião, não encontraram, no irmão capelão, o animador do seu espírito abatido, o enfermeiro zeloso dos seus males, o lenitivo para as suas lágrimas e dores?



Padre Abel Figueiral
. Colecção particular

A história dos capelães no C. E. P. há de fazer-se para bem do nossos esforço na guerra, para honra da religião e estigma de alguns fariseus.

O capelão era o pai de todos os que sofriam, o companheiro da suas mágoas, o participante das suas tristezas, o irmão mais velho, que para todos sorria, a todos aconselhava e por todos se sacrificava.

No fragor da batalha era o primeiro a dar um passo em frente, para animar e socorrer os soldados; nos postos avançados era o cura das almas, o enfermeiro, o representante dos antes queridos distantes, que a todos confortava.

Nas horas da bonança, nos templos improvisados ou ao ar livre, era o representante de Deus, que a todos animava, o pai benévolo que a todos perdoava, o patriota que a todos insuflava amor à Pátria, à família, e respeito pela farda, que todos vestíamos.  


Padre Manuel Lopes Ferreira
 Colecção particular
O capelão português pode dar, aos capelães de todos os exércitos, exemplos de sacrifício, de sofrimento sofrido estoicamente.

Quem sustentou a «Casa do Soldado» de Lavantie, destruída no 9 de Abril?! O capelão. Um capelão a organizou e sustentou do seu bolso. Ali encontravam os soldados e sargentos portugueses um refúgio à intempérie da Flandres.

Tinham fogões para se aquecer, instrumentos para tocar, jogos diversos, jornais portugueses de todas as cores para ler, livros, cigarros, bolos e vinhos portugueses. No fim de cada semana, os que se distinguiam tinham camisolas ou ceroulas de lã, etc.. Nunca esse capelão recebeu da Assistência Religiosa qualquer auxílio para tal benefício.
Capelão francês. Altar improvisado num armão de artilharia
Colecção particular
A tolerância do clero português e sua imparcialidade foram várias vezes postas à prova.

Eis um caso:
Em Vieille Chapelle, pela retirada do exército inglês, ficou uma igreja e uma cantina protestantes.


Capelão alemão. Colecção particular
Um dia vem-me dizer, que acabara de chegar do Brasil um missionário protestante para pregar aos nossos soldados. Pouco depois o padre protestante veio convidar-me para, na igreja protestante, presidir à primeira conferência do tal missionário. Se não aceito, nunca mais lá entrava, se aceito havia o perigo do desconhecido e do que iria passar-se. Aceitei, pedi ao sr. coronel Reis e Silva, comandante da 3.ª Brigada, para comparecer com o seu Estado Maior e mandar a música do 14. Tudo correu conforme os meus desejos.


Capelão belga com a sua montada. Colecção particular
À hora marcada iniciou-se a sessão pelo discurso do pastor protestante, que se referiu elogiosamente à minha acção.

Depois levantei-me para apresentar à assembleia o missionário protestante. este falou largamente sobre o Brasil e a acção protestante; mas de forma a não me magoar. Terminado o discurso levantei-me para falar. Sei simplesmente, que depois do meu discurso, na igreja protestante, nunca mais ninguém ali fez conferências instrutivas, senão eu.


Capelão inglês administrando a extrema unção
Colecção particular
Ali como em Brest, onde fui levado por uma missão delicada e difícil, as relações entre católicos e protestantes foram sempre as mais cordiais. Muitos serviços prestei às cantinas protestantes, que, sem auxílio do C. E. P., não poderiam cumprir a sua missão.

Fomos pessimamente recebidos em França, vigiados, espionados, e a princípio perseguidos; mas acabamos por triunfar e provar que o clero português sabe sacrificar-se pela sua Pátria e pela sua Religião.



Sentado: J. Barjona de Freitas, camachista; à sua direita
Júlio Rodrigues da Costa, livre pensador e revolucionário
republicano; à esquerda Padre Avelino de Figueiredo.
Todos amigos, porque dizem eles, acima de tudo são por-
tugueses e só pensam na sua Pátria. Colecção particular
A nossa acção foi tão evidente, e tão apreciada, que foi a grande alavanca, com que se construiu a união entre a Igreja e o Estado em Portugal. É devido ao nosso trabalho e porte no C. E. P., que a política e a religião vivem no nosso país, de mãos dadas, e ajudando-se mutuamente. A má vontade, pois, que nos recebeu, transformou-se em amizade, e a benevolência de todos até dos irreligiosos. Os capelães do C. E. P. jamais esquecerão as provas de estima e amizade, que receberam dos oficiais e soldados portugueses.

Só um facto, para terminar, para provar esta afirmação.


Capelão alemão. Colecção particular
Quando desembarquei no Entreposto de Santos, um motorista militar e desconhecido, acercou-se de mim e perguntou se trazia bagagem ou coisas sujeitas a alfândega.

Respondi-lhe que trazia a minha mala, a bicicleta, recordações da guerra, tais como granadas de diversos formatos, uma arma alemã, etc. Ele foi ao meu camarote, carregou tudo aos ombros e pôs no camião do Estado. Dali foi levar, o que me pertencia, única riqueza, que me deixou a guerra à Ordem Terceira de S. Francisco da Cidade, onde fui recebido por esmola e onde comi sopa dos pobres, durante oito meses até ganhar para poder comer e alugar um quarto. No dia seguinte voltei ao Entrepostos de Santos, para gratificar o gentil motorista.


Uma capela e o seu capelão francês. Colecção particular
Quando me dispunha a abrir o
dólman, para gratificar este filho do povo, que eu não conhecia, perfilou-se, fez-me a continência e exclamou: «Ó meu alferes, vai ofender-me, não aceito nada, porque sei o que fez por meus irmãos em França!»

O seu reconhecimento pagou de sobra tudo, o que eu possa ter feito pelo meu país e pelos meus queridos e inolvidáveis soldados, sempre tão obedientes e valentes."

                                                         Padre Avelino de Figueiredo

In: Revista "Defesa Nacional" de 1936

Capelães franceses e o seu meio de transporte
Colecção particular
*Outros sacerdotes portugueses receberam igualmente recompensas aos seus altos feitos e foram ainda condecorados com a Cruz de Guerra os reverendos Manuel Caetano, pelo seu assombroso sangue frio na batalha do 9 de Abril, e o cónego Álvaro dos Santos, pelo mesmo motivo. Também receberam louvores mais alguns padres portugueses e entre eles o reverendo padre Avelino Simões de Figueiredo.

Coorden. e iconografia: marr