UMA PÁGINA ESQUECIDA
DA
GUERRA EM MOÇAMBIQUE
Como um furacão assolador, as vitoriosas tropas de von Lettow
invadiram e talaram, na Primavera de 1918, todo o Norte de Moçambique, numa
audaciosa investida sobre Quelimane.
Os nossos aliados sul-africanos, a pretexto de nos auxiliar,
colaboravam na invasão, com a mais insolente arrogância, por onde quer que
passassem, era o seu primeiro cuidado captarem a confiança indígena, para
depois o indispor contra nós, minar pela base todo o nossos prestígio e
soberania aos olhos crédulos das populações autóctones. Nessas “contradanças”
de marchas e retiradas, duas companhias sul-africanas chegaram em fins de Junho
a Nametil e acamparam perto. O Tenente Humberto de Ataíde, como comandante do
posto e cumprindo directrizes recebidas, apresentou-se ao comandante da coluna e
ficou às suas ordens.
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O Tenente Humberto de Ataíde (à nossa esquerda) aquando em Angola com o Alferes Aragão, heróico comandante dos Dragões em Naulila (colecção particular) |
Chegara-lhe, então, a sua hora da fatalidade! Colhido pelas
engrenagens dessa tenebrosa máquina de cobiça e de traição política sul-africana,
o pobre e ingénuo herói estava de antemão condenado a não mais se
desenvencilhar dela, senão bem triturado, com o coração e a alma sangrando
agonias.
As hostilidades entre o major sul-africano e o oficial português
romperam daí a dias…Começou por uma nota em africânder, denunciando como
suspeitos de entendimentos com o inimigo, todos ou quase todos os sipaios da
guarnição do posto. Calando a sua revolta pelo grosseiro embuste, não tendo
maneira de contrabater a infâmia, o Ataíde cedeu. Dadas as circunstâncias, as
ordens recebidas, a natureza da suspeição, proceder de outro modo seria
provocar desde logo o conflito de jurisdições que se lhe afigurava grave.
Consentiu, pois, em que fossem desarmados os seus soldados indígenas e
ficou apenas com meia dúzia de sipaios, mal armados e um Sargento europeu.
Entretanto, havia informações de que os alemães avançavam por este
Distrito, devendo forçosamente passar pelo posto de Nametil. Os sul-africanos
comunicaram ao Tenente Ataíde que tomasse as suas precauções para a
contingência duma vitória alemã no inevitável combate que se devia travar.
Desnecessária advertência, pois que essa torpe milícia sul-africana até então
para nada mais servia senão para ser periodicamente zupada e escarnecida pelos
aguerridos askaris de von Lettow-Vorbeck! O Tenente Ataíde tomou pois as suas
precauções que tão-somente consistiam em evitar que os armazéns do posto,
abarrotados de víveres, viessem a cair nas mãos dos alemães vitoriosos.
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Sipaios (colecção particular) |
Dois dias depois, um intenso e longo tiroteio para os lados do bivaque
sul-africano põe-no de sobreaviso. Devia ser o anunciado combate, Ataíde passou
a noite ao relento, com a sua gente, e disposto a todas as eventualidades.
Acabado o tiroteio tratou logo de se informar, mas os sul-africanos tinham
debandado, levantando o seu bivaque, sem deixar rasto, nem notícia. Dos alemães
também não havia notícias. Para onde teriam ido? Ter-se-iam internado no mato,
como era a sua táctica, para caírem de surpresa, pela madrugada, sobre o posto
alemão? Nada se sabia…
Ignorante de tudo, desajudado de todos, sem soldados para defender o
posto, nem elementos para apreciar a situação, então, a fim de evitar um mal
maior, cumpriu as ordens anteriormente recebidas – por fogo aos armazéns!
Seguidamente, com a sua magra escolta, marchou ao acaso até encontrar
esses tredos aliados. E o seu pasmo não conheceu limites, ao vir topá-los,
muito tranquilos, bivacados no posto de Mùatúa, a algumas léguas à rectaguarda
de Nametil.
- «Que não! Não tinha havido nada!», foi a insólita explicação que
obteve. «O tiroteio que se ouvira, fora simples ensaio de metralhadoras. E que
ele, Tenente Ataíde, não devia ter mandado incendiar os depósitos…».
Tão alarvemente posto em cheque, por essa reles tropa africânder, a
sua honra de militar e de português, não lhe sofreu mais o ânimo ouvir-lhes as
insolências. Só lhe restava uma solução – um inquérito, um concelho-de-guerra,
a ilibação total! Nesse sentido remeteu logo um extenso relatório ao comandante
militar português da região, o então Major José Cabral, seu devotado amigo e que
mais tarde foi Governador-geral de Moçambique.
Não obteve resposta!
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Tropa de África (colecção particular) |
Debalde mandou segunda, terceira nota e nada! Por fim num telegrama
angustioso, pedia urgentemente uma palavra, uma sanção, fosse o que fosse….e a
resposta nunca chegou!
Convencido, enfim, de que cometera um erro crasso, tão facilmente
confundível com a cobardia, que nem desse amigo certo merecia uma palavra boa,
um gesto de defesa, um apelo, tornou-se juiz da própria causa. E foi inexorável
consigo mesmo, o ingénuo, o romântico, o impoluto herói!
A miserável cabala dessa tropa do sul de África tinha sortido os seus
efeitos. As ordens recebidas lá de baixo, da União, foram cumpridas à risca.
Porque veio a saber-se depois, que nenhuma das notas, dos telegramas, dos
angustiosos apelos do Tenente Humberto de Ataíde ao seu comandante e amigo José
Cabral, tinham chegado ao seu destino. Os miseráveis, por cálculo ou por
desdém, tinham-nos cassado todos, interceptando todos, retido todos entre as
suas papeladas.
Foi apenas isto, esta pequenina torpeza, que ele ignorou sempre, de
que ele nem suspeitou nunca, o que levou a condenar-se e a justiçar-se por suas
mãos.
Só quem nunca se viu ainda em África, sozinho consigo mesmo, nesse
lôbrego e hostil silêncio do mato africano poderá acusar esse bravo rapaz de
fraqueza de ânimo nesse minuto supremo. Demais ele andava adoentado,
convalescente ainda de uma crise de febres. E não há nada mais depressivo que
um longo estágio de vida sedentária em África.
Num relatório do Sargento que até ao fim lealíssimo, o acompanhou
sempre, mas com quem ele, decerto, por disciplina e orgulho nunca entraria em
confidências, disse:
- «No dia 4 de Agosto, desesperado de obter qualquer resposta do Sr.
Major Cabral, o Sr. Tenente Ataíde fechou-se no seu quarto a escrever cartas e
a rasgar papéis. Às três horas da tarde, tendo perguntado ainda se tinha vindo
algum correio para ele, como nada houvesse de facto, ele tornou a fechar-se no
quarto e pouco depois desfechou a sua pistola no coração”. As duas cartas que
deixou, eram uma para a sua mãe e a outra para o Major Cabral
Perante o exemplo dessa vida e a tremenda lição dessa morte, não será
lícito afirmar-se que o precoce fim do Tenente Humberto de Ataíde foi alguma
coisa mais que o simples óbito dum oficial em terras de África? Não teria
morrido com ele o velho brio português? E não nos assiste ainda o direito de
fazer outra pergunta?
- O que haveria a esperar deste honrado e heróico moço? De que
prodígios não seria ele capaz, para maior glória do seu tempo e da sua Pátria?
Carlos Selvagem
4
de Agosto de 1928
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Uma sentinela (colecção particular) |
Nota:
Sem comentários, porque os não precisa, transcrevo uma carta, a
última. Esta devia andar decorada por todos aqueles que em Portugal
vestindo uma Farda do Exército, têm ainda da Honra Militar uma noção ambígua e
difusa
«
Mùatúa, 4 de Agosto de 1918
Meu Exmo. Amigo
Esta carta é-lhe devida por duas razões:
porque V. Ex.ª faz favor
de me dispensar a sua amizade e porque lhe devo pedir
perdão de
não ter sabido corresponder até ao fim à confiança que em mim
depositou.
Pratiquei em erro. Erro tanto mais grave
quanto ele pode ter
consequências gravíssimas sob o aspecto da nossa soberania
aqui
–mais aqui declaro a V. Ex.ª – no momento em que o pratiquei
estava
absolutamente convencido de que tal devia fazer. Sou uma
vítima dos
acontecimentos e não um cobarde vulgar. Nunca menti
na minha vida em coisas que
a minha dignidade pessoal estivesse
envolvida. Tudo quanto fiz, fi-lo de acordo
com a minha
consciência e não precisava, pois, de para me justificar, recorrer
a embustes e a falsidades. Nesta ocasião suprema, muito menos
vou faltar à
verdade, que todo o homem de honra deve colocar
acima de tudo. Declaro a V.
Exa. Que na ocasião em que fiz o
desgraçado acto, que hoje me leva ao
aniquilamento, eu, e julgo
que comigo, quantos me acompanhavam, estávamos
absolutamente convencidos de que se praticava a única solução
que as circunstâncias
reclamavam. Fui infeliz, mas não fui
cobarde. Durante a minha vida de oficial,
várias vezes afrontei a
morte, em casos bem mais terríveis do que em Nametil e
nunca
dela tive medo. Hoje mesmo que findo esta, vou meter na cabeça
o ponto
final da minha vida. Julgo que dou uma prova mais de
que se saí de Nametil o
não fiz por receio de morrer. Tendo
obrigação de morrer no meu posto, eu não me
julguei com o
direito de sacrificar impiedosamente e ingloriamente os que me
acompanhavam e daí a razão do meu acto.
Um inquérito bem ordenado, feito com amor e
zelo mostrará, que
sou uma vítima da confusão desgraçada em que os ingleses nos
colocaram.
Se em minha consciência, fiz o que devia
fazer, nem por isso deixo
de compreender que me enganei e pratiquei uma grave
falta.
Faltas desta natureza – só uma coisa as limpa e redime. O sangue
– E por
isso me mato.
Resta-me pedir, que aos que comigo me
acompanhavam nada seja
feito. Assumo a completa e inteira responsabilidade de
tudo.
Para vítimas basto eu!
Adeus, meu caro amigo, abracem em meu nome,
quantos amigos
temos – o Bessa, o João de Meneses, o Sarmento Pimentel, o
MacBride, o Cunha Leal e tantos outros cujos nomes me ocorrem
ao coração, a
este coração a que eu desejava estreitar e que
dentro em pouco estará frio e
inerte. Mais uma vez perdão e o
último abraço do seu companheiro de ideais.
Humberto Ataíde
Coordenação de Textos e imagens: marr